Governo dos EUA vê afronta em declarações de Lula sobre Washington na China

     Apesar de se declarar neutro na disputa geopolítica entre Estados Unidos e China, o Brasil parece ter se alinhado claramente aos chineses e à Rússia. Essa é a percepção – e o receio – de integrantes do governo americano ouvidos pela Folha, que alegam que os brasileiros não só não têm prezado pelo equilíbrio em seus posicionamentos, como teriam adotado uma clara oposição a Washington.

     A reportagem entrou em contato com o Itamaraty com um pedido de comentário pouco antes da publicação deste texto, mas ainda não houve retorno.

     De fato, em sua visita à China, encerrada neste sábado (15/abril), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma série de críticas aos EUA – disse que o país incentiva a continuidade da Guerra da Ucrânia, atacou a hegemonia do dólar e insinuou que os americanos pressionam o governo brasileiro a boicotar a China. Em seu encontro com Joe Biden em fevereiro, Lula não usou a Casa Branca como palco para fazer críticas a Pequim ou a Moscou.

     As fontes americanas afirmam não pressionar o Brasil a não ter relações com o regime de Xi Jinping ou a escolher um dos dois países – os próprios EUA têm grande intercâmbio com a China, argumentam. Mas entendem que o presidente brasileiro e sua equipe de política externa, liderada pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e o assessor especial de Lula, Celso Amorim, adotaram um tom aberto de antagonismo aos EUA.

     Um dos aspectos mais problemáticos, na visão de Washington, é Lula enxergar os EUA como um obstáculo para o fim da guerra na Ucrânia – a China e a Rússia como os países que vão levar a paz ao conflito. Em Pequim, o petista afirmou que é preciso que os americanos “parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz, para a gente convencer o Putin e o [Volodimir] Zelenski de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois”.

     Também despertou preocupação Lula declarar que Zelenski, presidente do país invadido, “não pode […] ter tudo” dias antes da viagem à China, em encontro com a imprensa. Na ocasião, ele também afirmou que “Putin não pode ficar com o terreno da Ucrânia”, mas que “talvez se discuta a Crimeia” – o que poderia indicar que, na visão do petista, Kiev deveria abrir mão do território, anexado por Moscou em 2014, antes da invasão que culminou com o conflito atual.

     Por fim, dizem as fontes americanas, o governo brasileiro está repetindo fielmente o discurso do Kremlin – que após invadir um país, violando sua soberania e desrespeitando a Carta da ONU, ainda estaria cometendo inúmeros crimes de guerra.

     Na visão de Washington, o Brasil deveria ter um papel nas negociações de paz. Eles alegam, no entanto, que as declarações de Lula minam a credibilidade do país como um mediador equilibrado e neutro.

     Um funcionário do governo americano argumenta ainda que o engajamento do Brasil com a Ucrânia tem sido muito menor do que com a Rússia, o país agressor. E menciona a visita do chanceler russo, Serguei Lavrov, ao Brasil nesta semana.

     A viagem do presidente à China desagrada os EUA.

     As viagens pela retomada de laços estratégicos globais levaram o presidente Lula à China. Em termos práticos: para trazer dinheiro ao Brasil e garantir a agenda de sua campanha, calcada no desenvolvimento do País. A visita ao líder Xi Jinping é ambiciosa. Tem a expectativa de colocar o Brasil em um patamar mais alto nas relações com sua principal parceira comercial, depois do recorde de transações bilaterais alcançado em 2022 que bateu em US$ 150,5 bilhões (R$ 760 bilhões). Lula espera concretar uma via de mão dupla: que as exportações brasileiras ultrapassem a barreira das commodities e alcancem ao menos alguns nichos voltados a produtos de valor agregado; que os chineses, e não apenas de empresas públicas, aportem investimentos diretos no setor produtivo brasileiro, em apoio à reindustrialização proclamada por ele.

     “A magnitude dessa viagem é muito bem costurada”, diz Moises de Souza, especialista em Estudos da Ásia-Pacífico da Universidade Central de Lancashire, no Reino Unido. Ou seja: Além de destravar pautas como da certificação digital na entrada de produtos brasileiros nos portos chineses, soma ao menos 20 acordos, de intercâmbio estudantil a desenvolvimento do satélite SBERS 6, congelado pelo governo anterior e que é parte do projeto espacial que vem de 30 anos.

     A primeira parada da comitiva, formada por ministros, empresários e políticos, foi em Xangai para a posse de Dilma Rousseff, na quinta-feira (13/abril), como presidente do BRICS. O bloco com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul possibilita duas ações bem importantes, por meio do NBD (Novo Banco de Desenvolvimento): conseguir dinheiro mais barato no mercado mundial e administrar empréstimos a custo menor, entre seus membros. Na sequência, Lula conheceu o Centro de Desenvolvimento e Pesquisa da Huawei, fabricante de equipamentos para telecomunicações que tem itens vetados em território americano. E, antes da visita a Xi Jinping na sexta-feira (14/abril), em Pequim, estava prevista reunião com Wang Chuanfu, CEO da BYD (fabricante de carros elétricos), para falar de ao menos R$ 2 bilhões que a empresa deve colocar na antiga fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia.

     A viagem trata de outra questão cara aos dois países: a agrícola. “É de interesse da China que o Brasil produza mais comida”, assinala Souza. Devem ser enfatizados projetos como da transformação do semiárido em terras cultiváveis, que ainda liberaria a pressão do desmatamento da Amazônia. Além da energia renovável e da transferência de tecnologia, as negociações passam por investimentos chineses em mobilidade urbana, habitação, 6G e infraestrutura em geral no Brasil. A movimentação em torno de negócios já havia se adiantado, quando cerca de 200 empresários brasileiros estiveram no Fórum Econômico Brasil-China, no fim de março, em Pequim. Lá, assinaram em torno de 20 acordos de cooperação, com destaque para a permissão de transações comerciais em reais e yuans, sem conversões a dólar.

Onde há tensão

     Essa ultrapassagem em alta velocidade sobre os EUA, que têm a China como inimiga número 1, é um desafio para Lula. E se reflete também nas negociações para a venda de 20 aviões cargueiros com componentes produzidos na fábrica da Embraer, na Flórida, que estão, portanto, sob a proibição de transferência de tecnologia aos chineses, adotada pelos americanos. Por seu lado, a China cobra a participação do Brasil em sua Nova Rota da Seda, plano de infraestrutura global que Xi Jinping começou a tocar em 2013. Todos esses são pontos de tensão para os EUA, mas o professor Souza lembra da “capacidade histórica da diplomacia brasileira de se mover entre superpotências, sem alinhamento automático, mesmo no período do governo militar”.

     “Com os EUA, a agenda é fluida”, observa ele, lembrando que a visita de TLula ao colega Joe Biden tratou da defesa da democracia, mas os assuntos de livre mercado empacaram, a ponto de nem o montante esperado para o Fundo da Amazônia ter saído. “Por outro lado, a China é lógica e prática. À parte questões de governo autoritário, trata-se da primeira superpotência que há 40 anos era um país pobre e tem traquejo para conversar com os pobres. Não é o caso de EUA e Europa”. E o Brasil tem vantagem na disputa pelo dinheiro da única fonte disponível para investimento direto no momento, como diz o professor, porque “já comia grama com a China lá atrás, em 1993, quando foi o primeiro país reconhecido por ela como parceiro estratégico”.

      Ser visto como Nação neutra, e que se mantém entre as 10 economias do mundo, garante momentos de relevância geopolítica para o Brasil. Se o País é importante para os chineses, o que incomoda os americanos, a situação também pode ser entendida como ótima para negócios, observa Souza. E outra tradição, que divide com a China, é de não interferir em assuntos domésticos. Mesmo assim, Lula disse a jornalistas que tentaria convencer Xi Jinping de formar um grupo de nações para mediar o fim da guerra na Ucrânia, defendendo a integridade territorial do país. Nesse caso, o professor explica que, “em diplomacia, mediação não pedida não é aceita”. E se uma situação chega a esse beco sem saída só há espaço para o imprevisível.

(Fonte: Isto É/br.msn)